Quando a escola pensa que é tudo

A escola ganhou novas responsabilidades ao longo do tempo. Hoje, ela é obrigada a oferecer uma gama de serviços e atribuições bem mais amplas do que no tempo em que ela só tinha a função de ensinar o conteúdo curricular – que, diga-se de passagem, fazia com maestria, mais do que hoje. Por um lado, essa ampliação de responsabilidades obrigou a escola a ser mais humana, como não poderia nunca deixar de ser. Atualmente, o aluno é visto como o universo infinito que de fato é, uma pessoa única, com inúmeras necessidades e anseios. A diferença e a individualidade também passaram a ser respeitadas dentro da nova forma de ensinar, e isso é ótimo, mais do que urgente.

A escola pública ainda está penando para abraçar a todas essas atribuições, mas muitas já conseguem fazê-lo com certa eficiência, mesmo com tantas limitações. Na verdade, isso depende muito de equipe e do comprometimento dos profissionais de cada escola. Eu costumo dizer que muitos componentes de equipes pedagógicas da rede pública costumam fazer milagres para exercer bem a profissão. Mas é na rede privada que se vê melhor o empenho em abraçar – até com um certo excesso de tentáculos, por uma razão óbvia – essas responsabilidades que abrangem bem mais do que o ensino do beabá.

Aproveitando o jargão jornalístico, hoje a escola tem que manter uma pauta sempre quente, de olho nos assuntos mais atuais, muitas vezes polêmicos, além dos eternos tabus que ela tem a função de quebrar. Além disso, ensinar passou a ser uma tarefa ainda mais detalhada, já que não bastam os conteúdos prontos – aliás, os prontos estão sendo cada vez mais banidos desse currículo -, é preciso dar espaço à liberdade de expressão, às diferentes formas de comunicação, a inter e pluridisciplinaridade, focando principalmente naquilo que não é tão palpável assim. As atividades extracurriculares têm ganhado mais respeito, cuidado e valorização, o que inclui diversas atividades que antes não entravam no calendário escolar, eram feitos à sua margem.

Mais uma vez, as escolas particulares se destacam nessa tarefa, pois lidam com um público mais abastado e com mais disponibilidade – além de uma aguçada preocupação – para conhecimentos extras, para tudo que os diferencie. De olho nisso, e na satisfação que pais pagantes exigem das escolas contratadas, a rede privada acaba “inventando moda” nas diversas áreas do saber. Levar os alunos para além das salas de aula já virou carne de vaca para essas instituições educacionais, já que não perdem exposições, mostras, exibição de filmes, espetáculos e outros. Agora, a própria escola promove seus festivais e outras medidas que levem seus alunos a se destacarem nas diferentes áreas do saber e a descobrirem seus talentos. São incontáveis os tipos de trabalhos promovidos dentro das escolas particulares para desenvolver a criatividade, o espírito de equipe, a visão crítica e tudo o mais que só as professoras sabem denominar.

O problema, no entanto, é quando a escola leva isso tão a sério a ponto de achar que é tudo na vida do aluno e começa a invadir espaços que não cabem a ela, percorrendo o caminho inverso ao que pretendia favorecer. Tantas atividades extras acabam lotando a agenda das escolas particulares de uma forma que não sobram nem mesmo finais de semana livres. Ao dizer isso, pode parecer incompreensão minha sobre a arte pedagógica, mas advirto que não é. Percebo que, muitas vezes, a escola acaba invadindo um tempo e um espaço que não a pertencem com esse excesso de atividades para integrar alunos e suas famílias e amigos.

São tantos e diferentes os eventos fora do horário normal de aula que o convívio familiar, e até os momentos de lazer e descanso, acabam sendo prejudicados. Festival disso e daquilo, mostra de arte, apresentação de não sei o quê etc., estão pegando as noites, os sábados e os domingos que os alunos e suas famílias têm para se curtirem, mesmo que seja sem fazer nada de especial. Dormir até mais tarde, evitar o trânsito, ver um filme, jogar, conversar, brincar, ir na casa dos amigos ou recebê-los em casa, brincar com o gato, o cachorro, o papagaio, enfim, todas essas coisas simples e caseiras não devem se perder, e muitas das atividades sugeridas na escola incentivam isso. Muitas vezes, as apresentações promovidas visam justamente reunir a família, oferecer a ela um dia diferente e com atividades de qualidade. Mas quando isso é feito à exaustão, quando ocupa muitas noites ou quase todos os finais de semana, a proposta se perde, já que invade o sagrado espaço pessoal e íntimo dessas famílias. A escola tem que saber que não é tudo na vida das crianças e dos adolescentes.

Embora os novos caminhos do magistério sugiram que a escola hoje tem a função de educar para a vida e para o mercado de trabalho, ela tem que ter noção dos limites que isso exige. As coisas da casa entraram na escola – e não sei até que ponto isso é bom, já que valores humanos devem vir de casa e ser fortalecidos na escola, que nada mais é do que o convívio social na infância -, mas não é sempre que a escola pode invadir a casa. Promover um evento ou outro, grandes festivais, atividades bastante significativas que levem a família a conhecer melhor os dons e talentos de seus filhos, a se admirar mais e a se aproveitar melhor é muito válido e muito útil, mas realizar isso excessivamente, ocupando o tempo que cabe somente à família decidir o que fazer é uma invasão perigosa. Além da exaustão que isso gera – e que pode culminar em muitos outros problemas -, esse excesso acaba por, muitas vezes, desunir e prejudicar o convívio familiar ao invés de favorecê-lo.

Em uma cidade como São Paulo, entre essa camada mais favorecida economicamente, isso fica muito claro. Por causa dos eventos da escola, muitas famílias deixam de estar no sítio do interior nos finais de semana, ou na casa da praia, por exemplo. Além disso, pense nos filhos de pais separados. Muitos deles só tem o final de semana a cada quinzena para ficar com o pai ou a mãe, os avós, sair, conversar, enfim, estarem juntos em um ambiente só deles, de chinelos, bermudões, descabelados se for o caso. Além disso, criança também fica cansada, ainda mais essa criançada sobrecarregada das grandes cidades. Eles não têm um momento só deles, o que gera dificuldade para se conhecerem melhor, lá no íntimo. Por mais importantes que essas atividades e os demais cursos que os pais pagam a seus filhos se proponham a resolver crises existenciais, a fortalecê-los emocionalmente, esse é um processo muito pessoal e que só se dá de dentro pra fora, com um pouco de introspecção, reflexão, intimidade.

Humanizar o ensino é a melhor coisa que vem acontecendo nas escolas, mas é preciso respeitar justamente o que há de mais humano para que essas atividades promovidas pela escola (sem exaustão, por favor!) encontrem espaço para serem exercitadas em outros ambientes, principalmente dentro de casa, que é o único lugar onde conseguimos ser, de fato, nós mesmos.

Comentários

  1. Aliz, fico imprecionado com o geito que você escreve, neste artigo especificamente, "você acaricia uma face com uma mão, e bate na outra face com a outra".

    Recentemente, pelo motivo de minha esposa estar em São Paulo fazendo tratamento médico, passei a frequentar as reuniões de escola de minha querida Silvia Vitória, minha "gatinha" de 10 anos. Não passei apenas a frequentar as reuniões, mas tambéns as tarefas diárias. Acompanhar os estudos de meus 2 filhos, é uma tarefa que a mãe sempre faz com axímio carinho e dedicação. Enfim a casa começou a cair em minha cabeça, e em uma das reuniões eu disse: "Se nós pais não tivermos um mínimo de conhecimento de pedagogia, é possivel que nossos filhos sejam mais um aluno como milhares de alunos que se forma mas não se informa". Em resumo, são tantos deveres de casa para casa, que me penso nos pais que não tem a facilidade de ajudar os seus filhos a resolverem as questões a devolver as tarefas prontas. Digo mais: são "coisinhas" difíceis de resolver, que nos faz estarmos sempre atualizados para poder ajuda-los.

    PS- Por falar em filho, estou muito feliz. Saiu o resultado e meu filho passou no concurso do Ministério da Saúde/Ac.

    Desculpe-me se estou exagerando!

    Sim, percebi. Sou seu leitor.

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  2. É, minha linda, educação deixou de ser um complemento para ser um aglomeramento.
    Principalmente aqui em São Paulo onde é bonitinho e prazeroso encontrarmos com os amigos, somente via e_mail, e falarmos das "dificuldades de tempo x trabalho assoberbado"... nós gostamos de nos manter ocupados até não sobrar mais tempo.
    As escolas só estão refletindo esta tendência e, para sair deste círculo, vai ser bastante difícil.
    O quanto mais se falar sobre isto melhor!
    Brincar, rir até não poder mais, ficar sem fazer nada, são coisas que um único vídeo game elimina! Já vêm com jogos na memória... nem precisa de... todo mundo calado e jogando... jogando... jogando... até cansar, tomar um banho e ir dormír.
    Acredito na esperança de alguns que ainda tocam, mesmo que de vez em quando, o PS2 por um bate-papo na calçada ou na casa de um amigo.
    Há, como você enfatizou, alguns heróis que incentivam isto na rede pública e outros, muito menos, na rede particular.
    A história se repete só que em tempos e condições diferentes... estamos quaser lá... continuemos e veremos.

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