Em plena Sala São Paulo, todo o requinte de uma orquestra para crianças




Uma voz masculina previamente gravada pede silêncio. As luzes são reguladas para o espetáculo, dando ainda mais imponência à fantástica arquitetura daquela sala abrigada na antiga estação de trens da Estrada de Ferro Sorocabana. Uma figura feminina adentra o recinto, cumprimenta educadamente os presentes e passa algumas instruções. Antes de sair, apresenta Rodolfo, que conta a história e alguns segredos da Sala São Paulo e o que a torna tão incrível. É tudo parte do ritual.

E então, finalmente, os músicos começam a entrar e tomar posse de seus assentos e instrumentos. A sala é povoada por seus ilustres personagens. Todos a postos, chega o primeiro violinista, recebido em pé. Este, ao afinar seu instrumento, puxa todos os outros músicos de corda a acompanhá-lo. É um verdadeiro cerimonial que antecede, enfim, a chegada do maestro.

Eis que entra o maestro, cumprimenta o público e seus músicos com a elegância que lhe é peculiar e dá início ao show. Os pêlos do braço arrepiam-se logo na primeira nota. Música de picadeiro, animação, afinal, seus apreciadores são crianças de, no máximo, 10 anos. De repente, presos ao mistério que ronda todo aquele requinte, os espectadores mirins são surpreendidos com a chegada de um palhaço, fanfarrão, que invade o palco onde toca a orquestra. Só risos. Muito bem interpretado pelo ator Wellington Nogueira, formado pela Academia Americana de Teatro Dramático e Musical de Nova York, esse palhaço foi o responsável por inserir essas crianças à magia da orquestra.

O maestro, de seu púlpito, faz sinais para que o palhaço saia, deixando bem claro que não é bem-vindo ali. O brincalhão sai contrariado. Um tempo depois volta, agora pela porta lateral direita, feliz e contente. O maestro o coloca pra correr de novo. Uns bons minutos depois surge o palhaço novamente, mas agora portando um gigante martelo de brinquedo. Gritando, corre em direção ao maestro. Quem mandou expulsá-lo, não é?

Curiosamente o maestro responde aos seus reflexos e sai correndo, abandonando sua orquestra à própria sorte, fugindo do palhaço vingativo. Mais risadas. No entanto, mais engraçado foi ver o palhaço passar correndo de volta, agora de mãos vazias: ele fugia do regente, que lhe tomou o martelo das mãos e saiu em sua perseguição.

Assim começou e manteve-se todo o espetáculo, embalado pela arte da OSUSP (Orquestra Sinfônica da Universidade de São Paulo). Me surpreendeu a engenhosidade com que a apresentação foi projetada para, além de oferecer música de qualidade, prender a atenção das crianças e levá-las a mergulhar nesse universo mágico da mais refinada cultura. E a interação do maestro com o palhaço, bem como todo o número meticulosamente estudado para tal público, deu o tom de ouro a essa experiência inesquecível.

JustificarTradição bem adaptada


Apreciar a arte de uma orquestra, dando-lhe o devido valor, não é tarefa para qualquer um. Mais do que sensibilidade, é preciso um mínimo de engajamento cultural para compreender cada detalhe que compõe esse tipo de apresentação: um fino cerimonial de música erudita.

Se esta não é tarefa para qualquer adulto, quem dirá para crianças do Ensino Fundamental 1 (que abrange do 1º ao 5º ano). Pois foi em plena Sala São Paulo, símbolo da música clássica no Brasil, que crianças de sete a 10 anos tiveram a oportunidade de apreciar essa arte.

O programa “Descubra a Orquestra”, organizado pela Fundação OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo) com o intuito de “ampliar e fortalecer o desenvolvimento cultural e musical de alunos e professores inscritos”, cria oportunidade para que os pequeninos aprendam desde cedo a desfrutar de tão requintado espetáculo cultural junto a sua escola. O projeto prioriza diversas ações educativo-musicais levadas muito a sério.

Para poder participar do programa, as escolas devem inscrever-se pelo site, eleger um professor responsável e aguardar a oportunidade. Trata-se de algo bastante concorrido e com calendário especial. O professor responsável deverá freqüentar um curso oferecido pelo programa para que a visita seja autorizada.

“Os cursos são organizados para professores com ou sem conhecimento musical, com o objetivo de fornecer subsídios teórico-práticos para a realização de atividades musicais nas escolas. Cada curso é composto por três aulas presenciais aos sábados e trinta horas de educação à distância via Internet”, está registrado no caderno do Descubra a Orquestra entregue aos estudantes.

O interessante do programa é que ele faz mais do que levar as crianças para assistirem esse universo da música culta, mas prepara um espetáculo em que os pimpolhos consigam aprender e apreciar as minúcias de uma apresentação como essa. Lá, eles são ensinados sobre os detalhes de uma orquestra, quem é quem, os tipos de instrumentos e as hierarquias da tradição.

Idealizada adequadamente para esse público tão especial, o espetáculo inclui componentes capazes de prender a atenção por cerca de uma hora, envolvendo-os e levando-os a entender a imponente, porém delicada, música de uma orquestra, o papel de cada instrumento que transforma as notas e, unidos, banha a todos com uma sonoridade ímpar, encantadora.

Para essas crianças não foi sacrifício algum assistir a tal espetáculo, muito pelo contrário, foi um ingresso valioso para o aprimoramento cultural delas, mesmo que ainda não compreendam completamente, nesta idade, toda a sua importância. E isso sem perderem em diversão, alegria e descontração, uma vez que, conforme comprovou-se ali, a arte de uma orquestra pode ser explorada infinitamente.

Só lamento não ter podido fotografar lá dentro, por isso exponho umas fotos que tirei lá de fora mesmo. As regras ali são bem rígidas.

A Sala São Paulo

Maior e mais moderna sala de concertos da América Latina, a Sala São Paulo é o abrigo da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP). Projetado em 1925 e concluída em 1938, o edifício nasceu embalado pelo acelerado ritmo de crescimento paulista, na época, estimulado pelo café e a ferrovia. O trabalho de recuperação do edifício da Estação Júlio Prestes, construída no estilo Luís XVI, foi empreendido especialmente para a criação da Sala São Paulo, destinada a receber as melhores orquestras sinfônicas do mundo.

Lá dentro, além de encantar-se com a arquitetura preservada e toda a elegância de seu contexto, bem como da importância cultural agregada, você também se surpreende com os chamados “segredinhos” da Sala. Há alta tecnologia investida ali para preservar a qualidade do som.

” O projeto da Sala São Paulo possibilita a apresentação de qualquer tipo de concerto, pautada pela alteração do espaço da sala de concertos gerada pela flexibilidade do forro com painéis móveis. Além disso, os elementos de composição foram concebidos para a reflexão sonora multidirecional, atendendo a recomendações acústicas”, lê-se no Histórico apresentado no site.

Para que as crianças entendessem o que isso quer dizer, um de nossos recepcionistas no dia da apresentação, o Rodolfo, simplificou o que pouco tem de simples. No teto, 15 placas gigantes que são, na verdade, elevadores que deslocam-se pra cima e pra baixo de acordo com o concerto a ser apresentado e outras necessidades técnicas. Atrás do palco, a arquibancada repleta de crianças era também um conjunto de elevadores que, ao serem retirados os assentos, descem e alongam o palco até lá atrás, para orquestras mais numerosas. E os acentos onde estávamos, de aparente função simples, também guardam segredos interessantes. O som da orquestra, puro como ele só, sofre alterações quando executado com uma sala cheia de pessoas ou durante os ensaios, com a sala vazia. Para garantir a qualidade, as cadeiras possuem um mecanismo que simula, cada uma delas, a presença de uma pessoa, ajudando a acertar o efeito final da apresentação. Resumindo: toda a projeção da Sala é fantástica!

No site da Sala São Paulo é possível conhecer mais sobre sua história, bem como fazer uma visita virtual sobre os espaços internos e demais informações. É muito interessante! E só pra desmistificar a ideia que liga a alta cultura a grandes valores, já adianto que todo final de semana há apresentações a preços acessíveis a qualquer pessoa, conforme está no site. Vale muito a pena!

Acesse: http://www.salasaopaulo.art.br/.


Comentários

  1. Aliz!

    Não domino muito o assunto que você postou.

    Agora sei dar valor ao que é bem feito..... E o seu trabalho é dígno de uma grande profissional.

    Meus parabéns, pela postagem e a riqueza que você tratou o assunto.

    Abs.

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  2. Aliz,

    Que ideía interessante, essa apresentação para as crianças do Ensino Fundamental.Achei o máximo!

    A idéia é fantástica, associar apresentação de uma orquestra (Que é, emoção pura!)juntamente com um personagem tão característico da infância. Uma junção perfeita, de muito criatividade e de extrema sensibilidade.

    Proporcionar de uma maneira simples que os pequenos possam interagir, e que, por mais que não entendam, apreciem, estimule, incentive o contato com esse tipo de cultura, que é tão mistificada na nossa sociedade.

    Pena que essa apresentação não está aberta ao público, adoraria apreciar junto com meu filhote.

    Seu texto, como sempre maravilhoso, me despertou a curiosidade em conhecer a Sala São Paulo.

    Meus parabéns, mais uma vez pelo riquissímo texto.

    Um gde bj

    Michele Fonseca

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  3. Adoro a Sala São Paulo e matei um pouco a saudade.
    Eu sempre ia em dezembro, um calor insuportável, na época o Minzuc ou Minczuk era o regente e acho que coordenador...tanto tempo.
    Belíssimo artigo (como sempre !)

    Beijo grande

    Andréa Marinho-Phillips

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  4. É um trabalho hercúleo, competir com a infernal zoeira comercial que chamam de música. Mas é no grãozinho de areia que se cria a duna. Muitos desistem meio do caminho, muitos permanecem, garantindo assim a imortalidade do que é bom. Tanto que a música erudita permanece altiva, fieme e linda como sempre. Lindo, maravilhso, fantástico seu relato, Aliz! Isso é de grande valia também para perenizar a memória. A descriçãodo espaço, me fez considerá-lo uma orquestra arquitetônica. Hei de conhecer. bjos no coração, paz e bem.

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  5. Oi, Aliz!

    É o que sempre digo: se houver oportunidade, se houver acesso, claro que todos podem apreciar uma orquestra, uma peça clássica, enfim, música que se convenciona muitas vezes chamar de "elitizada" ( que bobagem, "elitizado" é o acesso e é um absurdo).

    Iniciativas como esta devem servir como exemplo em muitas cidades. Faz algum tempo que Salvador tinha um projeto parecido em algumas escolas - e não apenas com música, mas com arte em geral (museus, exposições,etc). Pena que o que é bom acaba ( sabe como é, mudam políticos, mudam tudo).

    Abs! Bem legal sua postagem!

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  6. Puxa! que coisa interessante, essas crianças vão aprender a apreciar ou a gostar deste tipo de música, pois vão lembrar deste momento descontraído que tiveram no primeiro contato com este tipo de música. è isto que toda escola deve fazer, inserir o componente lúdico em todas as suas práticas e teorias.
    Aliz, confesso que não li até o final, tive que sair, mas gostei muito.

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  7. Oi Aliz, fico feliz com o impacto que o Concerto Didático proporcionou nas crianças e em você também. Aliás, em todos os presentes.
    Só para lembrar, quanto à "convenção" de que o acesso às salas de concerto e à música erudita é elitizado, há concertos dominicais (na Sala São Paulo) em que o ingresso custa R$ 2,00 (dois reais) e a meia-entrada (R$ 1,00) para estudantes e maiores de 65 anos.É um SUPER PROGRAMA para se fazer aos domingos (lá pelas 11h da manhã).
    Um abração, do professor Danilo Barral,que esteve lá com as crianças da PAZ.

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