Nos olhos de quem vê

Íris não reclama por ser gorda. Seu marido, além de ciumento, faz questão de cuidar muito bem dela. Professora, 34 anos, negra, tem orgulho de sua cor e vive dizendo: “sou nega chique, e tenho nome de deusa”. Quem se incomoda com a aparência de Íris são os outros. No trabalho, na rua, na livraria... histórias assim ela diz colecionar. E ri. Talvez sua alegria e compreensão sejam algo muito além do nosso entendimento. Julgar pela aparência é coisa corrente. Pouco comum é ver alguém analisar o ato e classificá-lo como preconceito. Mas é. Assim como não podemos julgar alguém pela cor da pele, e isso é previsto em lei como crime inafiançável, também não podemos fazê-lo por causa de fenômeno tão comum como a aparência física. Determinar as características pessoais de alguém por meio de seu físico, unicamente, é mais do que preconceito, é falta de compreensão, tolerância e bom senso. É preciso inserir atitudes dessa natureza na lista dos preconceitos mais correntes para que esse comportamento não seja praticado com tanta naturalidade.


Não é preciso muito para ser discriminado pela aparência. Começa com a velha determinação do feio e do bonito. Essa classificação, se analisada de maneira cuidadosa, chega a ser contraditória. Para ser feio ou bonito, não importa, a avaliação irá julgar extremos: o gordo e o magrelo, o alto e o baixo, o cabeludo e o careca etc. E como se não bastasse a covardia de julgar características tão comuns, ainda se exerce a ignorância ao discriminar vítimas de problemas patológicos ou de deficiência. O preconceito é algo que sempre irá existir e é exercido de várias formas, em todo lugar, em qualquer situação, mas pode, e deve, ser controlado. Deve porque, partindo de uma análise primária, fica até feio para nós, “os racionais”, reconhecermos como somos fúteis e o quanto isso prova o nosso atraso mental. Mas se tal argumento ainda não convence, então o preconceito deve ser controlado porque prejudica, na maior parte dos casos, a saúde emocional de quem é vítima desse ato, causando sérios traumas. Na verdade, os argumentos representam nada mais do que apelos à consciência, mas quando isso não dá resultados, o que também é bem vergonhoso, os inconformados, popularmente chamados de “esquentadinhos”, usam de outros meios para impor o respeito que merecem.


Não há, previsto em lei, algo específico sobre discriminar alguém por causa da aparência física, exceto nos casos de racismo. Mesmo assim, na Constituição Federal há o artigo 3o que pode abraçar tal causa devido à sua abrangência: “Promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação”. Provar o preconceito é tarefa difícil, e sem provas não há como denunciar. Mas a pessoa pode contar com provas técnicas, documentais, testemunhais e periciais. Portanto, cuidado preconceituosos de plantão, provar é difícil, mas não impossível! E a vítima poderá ser indenizada por perdas e danos morais. E põe dano nisso. A cura de um trauma pode demorar anos, e isso se a pessoa afetada tiver condições ou coragem de procurar ajuda especializada.


A Psicologia estuda o preconceito, suas causas, seus limites, e ajuda as vítimas trabalhando o trauma. Mas é difícil admitir que determinada situação tenha causado um trauma, justamente por ser tão revoltante. Outras pessoas encaram com naturalidade, o que eu prefiro chamar de compreensão. Mesmo assim, ser rotulado por causa das características físicas apenas não deve ser bom. Nem para quem é tido como símbolo sexual. Simples brincadeiras como apelidar e fazer piadinhas relacionadas à aparência são consideradas formas de preconceito sim. E essas maldades, mascaradas pela graça, quase sempre levadas na esportiva, podem deixar marcas no outro a ponto de torná-lo depressivo. Na adolescência é comum que alguns desenvolvam uma personalidade introspectiva ou queiram se isolar por enfrentarem problemas com espinhas, por exemplo. Há pessoas que usam as críticas para melhorar, mas outras não conseguem, e isso gera um efeito reverso que agrava ainda mais o problema. Doenças como psoríase, por exemplo, que tem suas causas diretamente ligadas ao emocional, coloca muitas pessoas em situações desagradáveis, pois ataca a pele de forma bem visível, podendo se espalhar ainda mais dependendo de como as críticas afetam os sentimentos. Zilá ainda era criança quando sua professora a chamou de barata descascada. Ela tinha vitiligo. Apesar de ter chorado o dia todo, aprendeu que teria de saber lidar com a intolerância de algumas pessoas ignorantes. E aprendeu a se impor também, jpa que hoje, aos 59 anos, não se lembra de nenhuma outra ocasião em que tenha sido discriminada.


O problema ganha proporções perigosas quando esse tipo de discriminação chega ao ponto de sugerir a exclusão de alguém. Com medo disso, as pessoas aderem ao crescente culto ao corpo, como se perseguissem um estereótipo de perfeição já determinado, procurando igualar-se e, com isso, serem aceitas. A Psicologia atribui isso à dificuldade que nós temos em lidar com o diferente, em aceitá-lo e admirá-lo. Essa busca, que nada mais é do que uma forma de evitar possíveis rejeições, padroniza a aparência e o comportamento, fazendo com que se perca o encanto do que é único, singular. Perdemos a capacidade de admirar certas particularidades. É claro que não se pode generalizar, nem todos correm atrás desse ideal de perfeição imposto, mas grande parte sim, como explicou a Psicóloga Silvia Lima Ballochi numa entrevista. Ocorre porque muitos têm essa necessidade de comprovar sua auto-estima através do olhar do outro, e não da crença que se tem de si mesmo. Aí é que entra a personalidade. Como disse a Psicanalista Roseli Machado, “cada vez mais a beleza fica padronizada e artificial. É interessante o quanto a beleza feminina hoje está masculinizada e a masculina afeminada. Se você não tiver uma análise crítica, acaba entrando nesse rol também”.


Eu acho que desenvolver essa análise crítica é a melhor forma de se impor, além de contribuir para o resgate da admiração dos pequenos detalhes, da valorização do que é diferente e único. É claro, sem exageros, porque os excessos geram descontrole, causando danos. João pode não ter percebido, mas o fato de ter escutado uma colega de trabalho, que sempre o evitava, dizendo que não conseguia conversar com ele porque tinha nojo das espinhas em seu rosto, o fez desenvolver uma visão muito crítica do ser humano em geral. Com seus poucos 26 anos, ele não namora, não freqüenta eventos sociais, preferiu se isolar porque perdeu a confiança na capacidade de compreensão do olhar humano. Isso também não é bom, pois força a pessoa a privar-se de experiências que podem ser gratificantes e que precisam ser experimentadas.


O inconformismo gera o trauma porque a revolta maior é sentir-se impotente diante de uma injustiça tão inconcebível. O que todo mundo deseja é ser aceito da forma que se é. Com defeitos, mas também com qualidades. Nesse curto espaço de tempo entre o “olhar” e o “julgar”, tudo pode acontecer. Ao se afastar de alguém que você julga aparentemente pouco digna de você, pode estar perdendo preciosa chance de conhecer uma pessoa especial, capaz de lhe acrescentar muito. Então, sem exageros e com bom senso, é importante o resgate do valor das qualidades pessoais, treinando o modo de olhar para o outro, por mais piegas que possa parecer. Não é segredo, e a Psicologia confirma, que é mais fácil tirar sarro do outro do que enxergar os próprios defeitos, além de usar isso como tática para ocultá-los. Este, portanto, é um apelo à consciência por um respeito mútuo. Um sonho, mas também uma necessidade. Ainda vivemos na base da troca, por isso é bom tratar como se quer ser tratado, porque assim como a maldade, a consciência também está nos olhos de quem vê.

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